Desmancha prazeres



Encontrei ontem uma t-shirt de que gosto particularmente e que andava desaparecida há já demasiado tempo. Comprei-a em Madrid, numa loja meio designish, e tem ao peito um desenho que, no fundo, representa o nosso poder divino no que toca a decidir quantos pintos vão para o tacho e quantos para o aviário (ou seja, os que não chegam a provar o doce sabor da vida e os que são forçados a viver cada dia num autêntico inferno… para depois acabarem no tacho). Achei piada andar com estas provocações morais ao peito, por isso decidi comprar a t-shirt.
Estava a ler um daqueles calhamaços que tenho à cabeceira – e que lá ficam em média durante ano e meio – quando me deparo com o seguinte parágrafo:
«O ser divide-se segundo a potência a o acto. Um ser pode ser actualmente ou apenas uma possibilidade. Uma árvore pode ser uma árvore actual ou apenas uma  árvore em potência, em possibilidade, por exemplo, uma semente dessa árvore. Mas há que ter presente duas coisas: em primeiro lugar não existe uma potência em abstracto; uma potência é sempre potência para um acto; isto é, a semente tem potência para ser azinheiro mas não cavalo, e se a tem para ser azinheiro não a tem para ser pinheiro. Quer dizer que o acto é anterior (ontologicamente) à potência. Como a potência é potência de um acto determinado, o acto já está presente na própria potencialidade. O azinheiro está presente na bolota, e a galinha no ovo, pela simples razão de que não há ovos sem mais consequências, ovos em abstracto, pois o ovo é por exemplo um ovo de galinha, no qual a galinha já está implicada, sendo a galinha que confere a potencialidade ao ovo.»
Já não bastava reduzir a minha reflexão moral sobre o assunto à troça filosófica, como vem também dar uma possível (e irritante) resposta àquele indecifrável enigma da nossa infância com que os adultos gostam de vincar a sua superioridade mental: quem veio primeiro, o acto em potência ou o acto em si? Aposto que o Aristóteles apanhava dos meninos grandes na escola.


publicado em 13.11.2009