Noite de verão


Desci as escadas até à porta entreaberta da casa de banho. Entrei e vi que estava sozinho. Pensava na rapariga do café; contei novamente as instruções a seguir nessa tarde, os passos do plano meticulosamente engendrado durante semanas – o livro, o postal, o guardanapo, a deixa largada ao acaso, a atenção dela. Pensava em todos as coisas como se as visse naquele instante… O estado de concentração que temos quando estamos a mijar é tão absoluto como o sono, pensei, baixando os olhos para o urinol. Então senti uma mão que me agarrava a parte de fora da coxa e, instintivamente, virei-me e vi um rapaz alto e moreno com uma mão dirigida a mim, a outra acariciando a virilha. Os seus olhos chispavam, sedentos; aterrorizaram-me. Gritei um “questamerda” como pude, atrapalhado e idiota, mas bastou para ele se afastar. Compus-me de qualquer jeito e desatei a correr escadas acima. Lembro-me que ainda o tentei empurrar, mas não passou de uma placagem simulada – tive medo que, ao fazê-lo, ele me agarrasse com aquelas mãos e com aqueles dedos.
Era o prelúdio do meu outono de romantismo. Tinha ouvido rumores das casas de banho do shopping, nos quais nunca acreditara. Com o movimento que lá havia era impossível acontecer tal coisa. “Impossível”, repeti alto, e revi a cara dele deformada pela tusa, os olhos desgovernados, a língua contorcida, nojenta. Quis ter o mar à minha frente para mergulhar no rebentar das ondas e lavar-me daquilo tudo. Mas estávamos já em Outubro, o tempo dos dias de mar acabara. Era agora o tempo dos dias perdidos em aulas e outras frustrações. Fiz por esquecer aquele episódio.
Andava desde o ano passado atrás de uma rapariga que se sentava sempre com uma amiga a estudar num café de Cedofeita. Estudava Direito. Tratava os códigos de forma bruta, mas aos livros que lia nos intervalos dedicava uma imensa ternura. Gostava dos novos autores africanos e brasileiros, reconheci pela capa dois romances do Chico Buarque. Era morena do sol de verão e dela própria. Tinha um ar de índia americana e o riso vivo e franco, sempre à espreita por entre um sorriso gentil. Da amiga nem sei que dizer, mal a via naquela mesa junta à minha
Apesar de todos os planos esboçados com minúcia, nunca tentei sequer um gesto ou uma frase para a conhecer. Bastava-me passar ali o meu tempo. Ia lendo e estudando, como ela, mas nunca pedia chá: ela tomava sempre verde, ou de cidreira, gelado no verão. Eu pedia café, e ouvia canções do Chico Buarque na esperança que a frequência privada dos meus auscultadores capturasse a atenção dela: sonho de mulher em noite de verão / por que é que você veio me perder / quer se divertir fingindo me adorar / ou fingir se enganar me amando pra valer.
Nada acontecia e o acaso, com a sua fama salvífica, tardava em dar o mais parco sinal de ajuda (nem sabia bem o que esperar dele, na verdade). Os dias passavam e o romance idealizado, apesar de bálsamo do espírito, só tem graça em modestas doses diárias. Um homem tem outras necessidades, motivações e privações, como diz a canção. A espera é contra-natura.
Certo dia, uma rapariga da minha turma chamou-me, cantando baixinho mas com claríssima nitidez, ao engate. Nunca me despertou a paixão consagrada que sentia pela índia. Mas era perfeitamente adequada, fora isso, e até bonita. Namorava com um rapaz da faculdade ao lado, estavam juntos há três anos. Esse facto, porém, não a condicionou. Foi até mais fácil do que ao início me pareceu – ela tinha já alguma experiência, adquirida de outras tantas canções. Trocámos número de telemóvel a pretexto de um trabalho que nenhum de nós faria, sabíamo-lo. Dei início à troca de mensagens da praxe e, numa tarde, já acertávamos os detalhes da operação.
Mesmo estando já acostumada, ela insistia em percorrer todos os clichés protocolares (ou, melhor dizendo, anedóticos) deste tipo de coisas. Fui buscá-la a uma paragem de autocarro a meio caminho entre a casa dela e a faculdade, às onze horas em ponto. Trocámos algumas histórias circunstanciais para que ela, com calma e destreza, aproveitasse para me explicar “a situação”, garantindo assim meu inviolável compromisso para com o segredo daquela noite. Tranquilizei-a enquanto seguimos para a Via Norte, rumo ao motel mais foleiro dos subúrbios, que ela insistira que escolhêssemos. Naturalmente, fui eu que paguei. Caminhámos em silêncio para o quarto. Ela entrou primeiro, acendeu a luz. Eu fechei a porta, trancando-a com duas voltas.
À vinda as palavras eram mais fáceis pelo torpor dos corpos saciados. Deixei-a a uns quarteirões de casa. Pediu-me um beijo final, demasiado demorado para o que seria o protocolarmente previsto. Quando a vi dobrar a esquina voltei a saborear o momento em que fechara a porta do quarto na certeza de, mesmo que só por umas horas, mesmo sem a solenidade do romance, a nossa enorme insegurança, compartilhada e compreendida pelo outro, permitiria que do cumprimento habitual do desejo provássemos um instante de calor sincero. Nessas duas ou três horas, a maresia de Junho brotou naquela noite fria, cumprindo também desta vez a promessa que lhe fizera.
Lembrei-me de como, umas semanas antes do verão, a índia desaparecera de Cedofeita sem deixar um qualquer aviso, mudando-se com a amiga para uma praia da Foz ou de Leça. Aproveitei para dar férias ao café da rotina e mudei-me sem ainda ter novo pouso – erro grave a meio de uma época de exames, diga-se.
Felizmente, numa das tardes mais longas do ano, uns amigos decidiram improvisar um lanche nos jardins do Palácio. Levei alguns bolos, ainda quentes, de uma confeitaria perto de casa que eu fazia por manter em segredo do mundo. Encontrei-os sentados no chão relvado junto ao miradouro. Foi aí que a conheci.
Eles não sabiam pronunciar o nome dela, chamavam-lhe “a croata”, e ela não se importava. Por mais que esforce a memória, nunca se tornará nítido o semblante dela sem o banho de luz do sol poente que, reflectido pelo rio, derramava sobre nós a sua calda dourada. Nela, com a tez das mulheres mediterrânicas, o resplendor era magnífico. Nervoso e não me sentindo preparado para a contemplar, fui bebendo em absolvição minis atrás de minis. Pouco tempo depois, teve o efeito que esperava: quando a noite finalmente caiu sobre a cidade, continuei a vê-la com a cor e a glória do sol de Junho. Soube então que era a sua última noite no país, que dentro de algumas horas estaria a atravessar a Europa. Quando ela se afastou para se ir debruçar uma última vez sobre a varanda do miradouro e dizer adeus ao rio, à ponte e ao mar, juntei-me a ela no corrimão, sem a perturbar. “Ó Croata!”, chamaram-na, interrompendo a sua paz ritual. Reparou em mim e riu-se, aproximando-se. Era já noite. A luz fugia-lhe da pele. Quando vi a última gota de sol rolar-lhe pelo pescoço, em linha incerta, rumo ao ombro descoberto onde se despenharia, por instinto de socorro beijei-a, segurando-a nos meus lábios. A sua pele salgada sabia a mar. Senti então a sua mão pousar na minha cabeça e encostá-la ao peito. Ela quis que aquele fosse o último gesto de ternura antes de voltar à sua terra. Eu prometi-lhe que aquele seria o instante que me acompanharia nas noites frias quando o verão terminasse.

beije-me outro beijo uma outra vez / que importa se estes beijos não são meus / que eu só tenho esta noite de favor / nos braços de uma atriz.

Amory


publicado em 23.08.2014