São Pedro


Faço parte de uma tradição inventada por quatro amigos de faculdade. Todos os anos, no dia de São Pedro, subimos ao parapeito da ponte mais alta antes do oceano levando connosco uma garrafa de tequila e quatro copos. Dispomo-los no corrimão, em fila, para que quando o sol se aproxime do horizonte conseguirmos ver através deles o mar destilado em luz vermelha. Nesse instante decisivo, sustemos a respiração e mergulhamos no shot, a setenta metros de altura. Brindamos à promessa de alguém que nos leve para longe, o mais rápido, o mais longe possível, e por isso bebemos sempre em tom de despedida. Depois deitamos os copos ao rio e vemos como se transformam nos barcos dos pescadores que nesse dia saem em procissão pela barra. Pedem ao seu padroeiro a bênção de mais um ano de trabalho e de bonança. Calados, ficamos a vê-los enquanto navegam para o mar; vão lá pedir o mesmo que nós. É já de noite quando finalmente deixamos a ponte e corremos à pressa para os bailes da cidade em festa.
No quarto ano de faculdade, o João foi o primeiro a faltar à tradição. No verão anterior tinha anunciado a mudança para a capital, onde continuaria o curso. No dia em que nos abeirámos do parapeito, dispusemos na mesma os quatro copos e lemos a mensagem que nos enviara: «Sem mar que me levasse, tive que ceder à ambição de mudar, ao menos, de ponte: de parapeito de onde avistasse o horizonte – será outra ou a mesma linha, ainda não sei dizer. De olhos postos no sol não víamos a desolação dessa cidade atrás de nós, mas ela continuava a sufocar-nos o resto do ano. Não vos esqueço, amigos, e tenham a certeza que quando brindarem também eu mergulharei convosco neste rio, mais largo mas menos fundo que o nosso». Contentes por ele mas ainda angustiados pela separação, bebemos os três shots e lançámos o restante, ainda cheio, para que o rio o tragasse.
No ano seguinte o mar cumpriu a promessa e levou o Rui para os antípodas do mundo. De lá, ia-nos falando de uma metrópole de milhões de pessoas e prédios altíssimos, e dinheiro que chegava para todos os luxos que ocorressem à imaginação. Sem pontes por perto, subiria nessa tarde de São Pedro ao prédio mais alto e brindaria também, seguro que nos avistaria ao longe. Bebemos os dois por ele; mas desta vez, como afronta ao mar, num ridículo desafio, cada um bebeu quatro shots de fiada. Atirámos os copos vazios ao rio e logo o peso do álcool fez deitar-nos no chão. A poucos metros de nós os carros passavam na auto-estrada a uma velocidade estonteante, fazendo vibrar o cimento do chão… mas logo se tornou num remoto zumbido. Num instante adormecemos os dois com o sol do fim de tarde, embalados pelo calor sublimado da tequila.
Acordei com o barulho de estrelas que rebentavam no céu: os pescadores lançavam foguetes e davam início ao baile na rua. Vi então o André demasiado inclinado sobre o corrimão da ponte, de olhar fixo no luar reflectido pelas ondas. Tinha na mão a garrafa de tequila, vazia. Aproximei-me e vi-lhe na cara dois traços cavados de lágrimas. Tremia muito, mas nos seus olhos não havia vida, uma centelha que fosse. Pus-lhe a mão no ombro. Acordou daquele transe e sorriu. Disse-me: «siga para a festa», e segui atrás dele.
Nessa noite entrámos num dos bares mais concorridos da cidade e logo o perdi na confusão. Fui puxado por outros amigos, deixei-me levar por eles. Dancei e bebi até de manhã. Ao romper do dia fui encontrar o André num beco próximo do bar, sentado no chão, adormecido nos braços de uma rapariga singularmente bonita: não era desta terra, tinha a cor exótica e a beleza dos ventos quentes do outro lado do mundo. Imperturbados pelo alvoroço da noite que destroçara os corpos e a cidade, dormiam sorrindo serenamente: embalados por um barco que (quis acreditar) navegava já em alto mar, rumo ao sol nascente.

Amory

publicado em 05.07.2014