As estátuas do Windmill


Houve um tempo em que eram considerados audazes aqueles que se levantavam para troçar do establishment de forma audível, provocatória, impressionante mas sempre, sempre, com reverente dedicação ao público e à arte.
Quando em 1930 Laura Henderson ficou viúva, acompanhava-a então uma vasta fortuna conquistada pelo seu marido no negócio da transacção de matérias primas. A septuagenária socialite prontamente recusou seguir o caminho convencionado para as senhoras da sua posição: os clubes de croché, os intermináveis brunches no countryside inglês, os sumptuosos eventos de caridade – tudo isso a entediava incrivelmente. Em vez, decidiu comprar, recuperar e gerir um velho teatro no West End londrino.
Por irreverente inspiração da proprietária, o Windmill Theatre tornou-se na primeira casa de espectáculos inglesa e exibir em palco senhoras nuas – totalmente nuas, isto é. Sim, é verdade que do outro lado do Canal já há muito que Josephine Baker dançava e rebolava nas Fólies Bergère apenas com uma saia de bananas. Mas na fria e austera Inglaterra sequer o pensamento de isso acontecer em território nacional era indecoroso e obsceno; assim o sentia especialmente a classe dirigente inglesa.
A grande dor de cabeça de Mrs. Henderson nessa louca empresa sempre foi a censura. Felizmente, tinha a capacidade, os meios, os contactos mas, sobretudo, a afronta de ridicularizar com perspicácia as proibições que os defensores da ordem a da moral impunham aos shows de nus do Windmill. Argumentou Mrs. Henderson que se a nudez podia ser apreciada publicamente nas estátuas das principais praças e nos quadros dos museus mais visitados, porque não no teatro? “Porque as figuras não se mexem”, retorquiu a sábia voz da censura. O Windmill Theatre tornou-se, assim, na primeira casa de espectáculos inglesa a exibir em palco senhoras nuas, totalmente e obrigatoriamente imóveis, estáticas, do princípio ao fim de cada apresentação.
Com a guerra, a nightlife londrina desvaneceu a uma última luz na ribalta, na Great Windmill Street, a única cortina que se conservou hasteada durante o Blitz – as 57 noites consecutivas em que Londres foi bombardeada pela Luftwaffe. O Windmill recebia todas as noites soldados prestes a embarcar para as trincheiras, familiares desesperados, civis desesperançados, deputados, membros do governo e da casa real. A censura, a mesma que havia decretado o fecho compulsório de todos os teatros da capital, assistia impreterivelmente noite após noite aos espectáculos musicais da Revudeville com as suas estátuas exóticas, indecentes e demasiado humanas. A música era ensurdecida pela chuva de destruição que assolava londres. Mas no palco, ao léu, frontal e puro, estava um qualquer símbolo de indecência ou liberdade. E por esse símbolo, lá fora, travava-se uma guerra.



publicado em 12.02.2010