O paraíso. São quase três da madrugada e ainda estão vinte e
tal graus à luz do lampião pregado no terceiro andar. Noites de tanto calor só
merecem que as festejemos vindo ler para a varanda, tal e qual como agora o
faço – cadeira encostada no gradeado e os pés a arrefecer no granito fresco.
A sessão das dez à muito que acabou e, como os cafés à
semana fecham mais cedo, só uma ou outra gaivota disturbam a paz caída no largo
entre as árvores, a luz ténue dos lampiões e a água corrente do tanque. Ou
melhor, as gaivotas e o jovem casal que acaba de chegar vindo da rua da
esquerda, a tropeçar nas pedras soltas da calçada ao longo do seu caminhar
cambaleante. É o álcool minha gente, o mais popular e o mais nobre dos vícios,
que os guia. Riem e falam alto, balbuciam complexos discursos em latim e em
grego e ignoram tudo o que os rodeia – até o tanque de água do qual se aproximam
perigosamente. Ignoram o facto de, agora, estarem os dois molhados dos pés à
cabeça, ou se calhar não, porque começam a cantar um meloso chorinho latino enquanto se abraçam e escorrem
a água do corpo.
Penso egoistamente em despachar aquele toalhão roto que
ainda guardo sem saber porquê. Tiro-o do armário e lanço-o o mais longe
que consigo. Indico-lhes, sem transparecer muita preocupação, a minha modesta
ajuda. Já enrolados e um bocado mais secos, juntam as vozes e dirigem a mim e
ao lampião de cima uma trova carioca em jeito de agradecimento, antes de
desaparecerem aconchegados rua abaixo.
Eu não sabia explicar nós dois. Ela mais eu, porque eu; e
ela não conhecia poemas, nem muitas palavras belas. Mas ela foi me levando pela
mão; íamos todos os dois assim ao léu. Ríamos, chorávamos sem razão. Hoje
lembrando-me dela me vendo nos olhos dela. Sei que o que tinha de ser se deu.
Porque era ela, porque era eu.
publicado em 08.07.2009