“Bairro dos livros no Porto só precisa de um
empurrão” e “Modelo
de pólo da Cinemateca ainda sem consenso”. Dois artigos
publicados na edição de hoje do Público, relativos à cidade do Porto.
Gostaria de, partindo destes títulos, fazer uma breve
análise sobre o papel do Estado e da Sociedade Civil na gestão de projectos
(locais) de interesse público. Aliás, “alegado” interesse público no primeiro
caso e “específico” no segundo – já por aqui poderíamos mesquinhar no que toca
à legitimidade de intervenção, mas abordemos o assunto pelo aspecto
essencialmente prático.
A ideia de um bairro livreiro no Porto surge agora que o
circuito das galerias de Miguel Bombarda é um sucesso evidente como fenómeno de
promoção comercial das galerias associadas e de revitalização urbanística e
cultural da zona a que se circunscreve. Fenómeno que começou a ganhar forma há
cerca de dez anos, quando um punhado de artistas portuenses decidiu instalar-se
na dita artéria e, por contactos e interesses comuns, conseguiu atrair para o
“bairro” galeristas conhecidos, interessados e iniciados. Foi um processo que
ganhou maturidade ao longo do tempo, apresentando actualmente os frutos há
muito esperados. Este estatuto permite agora obter vantajosos patrocínios de
muitas grandes empresas e, pelo seu contributo para a valorização cultural do
Porto, exigir à autarquia que cumpra a sua quota parte na realização deste projecto de
manifesto interesse para a cidade.
Os livreiros dos Clérigos aperceberam-se finalmente do
potencial económico-cultural que têm nas ruas onde estão instalados e parecem
querer começar idêntico processo ao que motivou os galeristas de Miguel
Bombarda. Constato, porém, que não é da melhor forma que o fazem: “Depois de ter contactado alguns livreiros, que lhe pareçam
pouco motivados, Jorge Afonso Mota [um dos promotores] tentou ainda apresentar a ideia à Câmara do Porto, mas
também ali a receptividade foi fraca. Resumindo: “Não consegui nada”. E pouco há de conseguir se
insistir na ideia de meter a autarquia ao barulho. Mesmo que a reacção desta
entidade fosse o mais entusiástica possível, seria muito improvável que o
projecto ganhasse alguma coisa com isso. O nível de informalidade e deknow how técnico necessário para “conspirar”
essas ideias criativas e mirabolantes subjacentes a qualquer projecto cultural
nunca poderá ser alcançado por quem nos cobra os impostos, nos manda fechar as
lojas a xis horas da manhã ou nos impõe taxas
suplementares para a recolha do lixo. Gente que, para além disso, se deixa
manipular pelo calendário eleitoral – ainda que muitas vezes inconscientemente,
estou em crer. Nem será isso o mais desejável: a principal obrigação de
qualquer autarca e respectivos funcionários é a boa gestão da cidade segundo
determinada orientação política. Não se lhes deve pedir veia artística mas sim
engenho e arte na missão para a qual foram eleitos.
Como nos diz o senso comum, a criatividade não está nos
edifícios administrativos, nas repartições públicas ou nos gabinetes da
hierarquia estatal; está, isso sim, nas ruas. A novamovida portuense
(a própria, da zona dos Clérigos) brotou do espírito visionário de alguns
jovens empreendedores que vislumbraram nessas ruas novecentistas de armazéns de
tecelagens abandonados o lugar ideal para a realização de concertos,
exposições, mostras, instalações de vanguarda, encenações, feiras,
jantares-concerto, mostras-feira, instalações circenses, projecções de
encenações e toda a espécie de híbridos com potencial artístico que se
conseguiram lembrar. Terá havido, mesmo no tempo áureo do Porto 2001 (se é que
esse tempo existiu), alguma entidade ou funcionário público que tenha igualado
esta criatividade empreendedora?
Isto é o que está no papel, mas aposto que as melhores
ideias estão bem guardadas, longe da curiosidade pública: “Ideias
não faltam: almoços de fim-de-semana com escritores, recuperando a tradição das
tertúlias, publicação de uma revista com sugestões de leitura feitas por
autores, menus gastronómico-literários nos restaurantes da zona (à sugestão do
chef corresponderia uma sugestão de um escritor), o lançamento de um cartão de
descontos para famílias de leitores, em ligação com o Plano Nacional de Leitura
e com outras instituições culturais da cidade, leituras e dramatizações de
obras literárias…”
É agora que invoco a 2ª noticia referida no início. Basta
ver o imbróglio em que os altos dirigentes do Ministério da Cultura meteram o
projecto do pólo portuense da Cinemateca para comprovar o que escrevi em cima.
Nota-se em todo este processo (necessária e irremediavelmente “público”,
infelizmente) uma falta de sensibilidade atroz para com os “nativos”, na
condição de espectador ou colaborador, e o desconhecimento óbvio do terreno,
perfeitamente natural a quem toma decisões a 300km de distância e não sabe o
que se passa nas ruas. Resultado: este estranho modelo de Cinemateca
esquartejada e mal amanhada que, se a bom tempo nada for feito, será certamente
mais uma tentativa falhada de “criar públicos para a cultura”. Ou isso, ou
preparamo-nos para uma odisseia interminável de querelas políticas ao sabor dos
caprichos eleitorais, totalmente infértil, ultra irritante e, ainda por cima,
muito pouco original. Ora, bem sabem o que devem os “públicos” fazer perante isto:
virarem-se para os quadros e para os livros!
publicado em 18.05.2009